Para conhecer a versão dos vencedores já basta a História e os historiadores. A obrigação do investigador probo é a de salvar a realidade ocultada.
Com efeito, a perspectiva do historiador doutorado Rui Ramos (RR), autor/
coordenador da História de Portugal recém editada que estamos comentando (Ver Nº 331) pertence ao género “politicamente correcto”, geralmente adoptado pelos mais bem sucedidos profissionais do ramo; seja no meio académico, editorial ou mediático. Desde os tempos medievais, a função dos “cronistas da corte” tem sido essa: exaltar os feitos dos poderosos, defender a ideologia da classe dominante e seus interesses Enfim, em todas as épocas, assim foi. É a lei da vida, da sobrevivência, dizem os pragmáticos do moderno liberalismo. Lei que se aplica aos seres humanos .... e aos moluscos também.
No campo da suposta ciência historiográfica - ou, arte de deixar registo da história dos humanos - duas vias paralelas se apresentam ao espírito crítico: i) a leitura literal do registo e sequente interpretação; ii) a interrogação sobre o não/registado e a procura de uma resposta plausível..
Vamos então aplicar ao Capítulo X da obra em questão, intitulado “ A Revolução do 25 de Abril “ o esquema de análise acima proposto, embora na forma abreviada requerida para um texto de imprensa.
- Leitura literal
RR começa (pág. 707) por destacar a importância dos generais no golpe. “Embora nunca pudessem ter feito o golpe sem Spínola, criaram a ideia, depois geralmente aceite, de uma revolução dos capitães”. (715). “O golpe do 25 de Abril foi uma pura operação militar, sem ramificações civis ou diplomáticas .... a embaixada americana, às 11 horas da manhã, não tinha indicação ...” (710). “no próprio dia, a maior parte dos lisboetas limitou-se a comprar jornais ... foram estudantes e rapazes quem começou por festejar as tropas.” “No dia 25, não foi o ‘povo’ que determinou os acontecimentos, mas o fracasso do regime” (713). “... um clima de debate e reivindicação, logo desde o dia 26: marchas nas ruas, assembleias nas fábricas e escolas .... greves como as dos CTT e TAP, acarinhadas (textual !) pelos grupos de extrema-esquerda.” (714).“A 19 Junho, nos Açores, Spínola ainda pediu auxílio ao presidente americano Nixon...(mas) ... Kissinger decidiu que qualquer ajuda dependeria do PCP sair do Governo “ (717). RR menciona a tentativa frustada de Spínola, em Julho, para se fazer eleger presidente de imediato e adiar a Assembleia Constituinte para fins de 1976. (715). A demissão de Spínola como resultado da derrota sofrida no ‘28 de Setembro’ por força da mobilização popular, leva RR a concluir (pág. 718) que “ a História do 25 Abril foi reescrita como uma ‘revolução de capitães’ logo transformada em ‘revolução popular’, cujo destino final só podia ser um: o ‘socialismo”.
“Nenhum partido, depois de Setembro, se reclamou da direita. À esquerda, todos trataram pôr a render o seu património de ‘resistência ao fascismo’ .... ocuparam os serviços públicos, as autarquias ....o PCP ultrapassou todos. Já tomara a dianteira na ocupação dos sindicatos ... organizados agora em Intersindical. ... O primeiro-ministro Vasco Gonçalves e a 5ªDivisão do Estado-Maior-General caíram sob a sua influência.“ (pág.724/26). Porém, RR escreve logo a seguir: “O PS era, no princípio de 1975, o partido com mais lugares no Governo e mais influência na imprensa” (726, linha 30) .
“Tudo parecia indicar uma nova correlação de forças .... o PS mantinha contactos com os spinolistas ... o fracasso do 11 de Março comprometeu todos os ‘moderados’. Nessa noite, a revolução deu o salto ...por iniciativa da 5ªDivisão ... foi a célebre ‘assembleia selvagem’ (727)”. RR considera o “Processo Revolucionário Em Curso – PREC”, só a partir dos acontecimentos do 11 de Março 1975. “...apesar de...uma revolução conduzida através de legislação e com cautela” (730) . Para logo a seguir, RR passar a fazer fé numa Comissão de Averiguação de Violências (Sevícias, no original) nomeada a 19 Janeiro 1976, pelo já Conselho da Contra-Revolução; cujas conclusões referiam sete vezes mais presos políticos que no fim do fascismo, episódios da maus tratos e até tortura, etc (732). E afinal, “O MFA (pós-11 de Março 75) tinha organizado eleições que, pela primeira vez em Portugal, se tornaram numa fonte de legitimidade política” (734) .
Durante o Grande Confronto –assim RR designa os meses de Maio a Setembro de 1975 - “O PS não estava sozinho. Contava com uma parte da extrema-esquerda, a que tinha o PCP como inimigo principal, os maoístas do MRPP. Mas, sobretudo, passou a dispor do auxílio da Igreja...Em Julho e Agosto, a Igreja promoveu enormes manifestações anticomunistas no Norte, as maiores desde 1974”. (736). O governo, após o cerco a S.Bento, em 13Novembro, “suspendeu actividades e pensou refugiar-se no Porto sob protecção da NATO ...viveu-se entre boatos e enormes manifestações de rua ....Mas ninguém desejava uma guerra civil” (742).
A Revolução terminou a 25 de Novembro 1975, por efeito daquilo que Rui Ramos apelida de “O Compromisso de Novembro”.
Creio que a perspectiva do autor sobre a Revolução de Abril - Cap. X, da História de Portugal, de que é o principal responsável – fica suficientemente explicitada através da leitura literal das transcrições atrás citadas. Trata-se da visão histórica congenial aos sectores mais reaccionários da direita política, adoptada por todas as forças contra revolucionárias inimigas da componente popular e patriótica de Abril. Como cidadão anónimo, Rui Ramos pode até vender a alma ao diabo e ir para o inferno; como historiador, professor, doutor e nem sei que mais, demonstrou ser demasiado “politicamente correcto” para o ofício. Ou talvez eu esteja enganado; talvez seja por isso mesmo que os “poderes vigentes” lhe publicam terceiras edições com três meses de avanço!
Dispenso-me aqui –e dispenso os leitores – de rebater uma-a-uma as deficiências de visão de que sofre o autor. Pois se ele nem sequer viu as fotografias da multidão no Largo do Carmo, ou no Terreiro do Paço; mas no dia seguinte (sem fotos) conseguiu ver manifestações de protesto! É obra! de cronista visionário, sem dúvida. Na verdade, é enorme o volume de coisas, acontecimentos, situações, etc, de que RR não tomou, ou não quis tomar, conhecimento; ou seja, a realidade oculta, ou ocultada, que compete salvar, para que a História se respeite. Isso leva-nos, de imediato, à segunda proposta de análise: a interrogação sobre o não/registado e a procura de respostas.
Uma das mais importantes realidade ocultadas pelos historiadores de serviço, comentadores avençados e gente que se deixa ir na onda, diz respeito à intervenção estrangeira (imperialista) na Revolução de Abril. No caso da obra que estamos questionando, essa ocultação é praticamente total; trata-se, aliás, da posição oficial do regime democrático vigente, filho natural da contra-revolução. Para a totalidade das chamadas elites da burguesia no poder mais clientelas e penduras, o assunto é religiosamente tabu. Um não/inscrito, diria o filósofo José Gil. Intervenção estrangeira na revolução portuguesa? Não tomei conhecimento, nem sei do que se trata, nem quero saber. Assim respondem os académicos nacionais e os sicofantas com acesso mediático. Não apenas indígenas. De um historiador catalão (S.Cervelló), que permaneceu em Lisboa durante todo o Prec ouvi, na apresentação do livro de sua autoria sobre a revolução portuguesa, a seguinte explicação: “Não se pode meter tudo”. Ora aí está, uma explicação científica, por testemunha qualificada, para o apagamento da intervenção estrangeira!
R.Ramos ainda estará mais refinado, trinta anos passados. Frank Carlucci, o embaixador americano padrinho da contra-revolução portuguesa merece-lhe somente duas curtas alusões. A VI Esquadra americana, nunca a enxergou no Tejo, nem sequer na histórica madrugada do 25 de Abril, viu o imponente porta-aviões Forrestal, rodeado por dezenas de navios da Nato. Efectivamente, ao largo da costa portuguesa, ou fundeada no Tejo, sempre esteve a polícia de intervenção da Nato, em todos os momentos cruciais da revolução portuguesa; “manobras há muito calendarizadas”; explicava-se; e isso tem chegado para o historiador (imparcial!) ficar ceguinho.. Mas a cegueira da historiografia oficial – a obra de RR incluída – sobre a ingerência das potências Nato, não apagou apenas as silhuetas dos navios de guerra em águas portuguesas nos 19 meses revolucionários. Apagou também toda a formidável mobilização dos governos reaccionários europeus e americano contra um Portugal liberto do fascismo. No Verão de 75, ao nível mais alto dos governos ocidentais, esteve em projecto a ocupação dos Açores e a invasão do território continental; ao aproximar-se Novembro preparava-se o bombardeamento da comuna de Lisboa e a guerra civil entre o Norte e o Sul do país. A cruzada anticomunista internacional contra o Portugal de Abril atingiu proporções únicas de irracional paranóia. Nuvens de espiões, de agências de sabotagem, provocadores e infiltrados, rios de dinheiro campanhas difamatórias, tudo foi usado para destruir o processo libertador português.
De nada disso dá conta –tomou conhecimento– o cronista/ historiador Rui Ramos na sua obra. Também não se deu ao trabalho de percepcionar, como tal, as provocações no jornal República (Maio/Jun. 75), o assédio ao congresso do CDS (Porto, Jan. 75), o assalto e saque da embaixada de Espanha (27 Set.). etc. Em contrapartida, percepcionou muito bem a actividade conspirativa do PS com os spinolistas, depois com o MFA dos moderados, com a Igreja, com a extrema-esquerda e a restante escória a mando e estipêndio do imperialismo.
Mas além disso, RR devia ter percepcionado o Levantamento Popular do Norte, em Julho/Agosto 75, como sendo o prelúdio da guerra civil desejada pelos inimigos de Abril, abrindo a caça aos comunistas e antifascistas, com assassinatos e incêndios abençoados pelo arcebispo de Braga e cónego Melo; devia ter visto, que no Grande Comício do PS na Fonte Luminosa (19 Jul.) mais de metade dos manifestantes era dessa gente do antigamente fascista, sedentos de desforra e vingança; RR devia ter registado que a Assembleia de Tancos (3/4 Set. 75) que liquidou o MFA, foi muito mais “selvagem” que a da noite de 11/12 de Março (onde quem quis entrar entrou e participou, enquanto em Tancos eu próprio fui impedido de entrar perante ameaça de prisão); Rui Ramos deve saber que a fuga, em pânico, para Espanha e Brasil da elite burguesa nacional, a partir de Março 75, representou um triunfo revolucionário com rara equivalência na história moderna; RR devia ter prestado mais atenção à influência nefasta que na solução colonial exerceram as formações políticas civis e militares, com ligações ao imperialismo; etc, etc, etc.
O Capítulo XI, intitulado “Uma Democracia Europeia desde 1976”, resume-se a um panegírico de 30 páginas de exaltação triunfal ao regime vigente; do qual vamos fazer uma rápida leitura literal. Assim: “No princípio do séc.XXI, Portugal era uma democracia integrada na União Europeia, com uma elite política civilista, uma sociedade urbana e uma economia terciarizada, das mais ricas do mundo....”, lê-se a pag. 747 ... e custa a acreditar! “... a sociedade portuguesa mudou como nunca mudara antes...”; para, mais adiante (pág. 763), afirmar: “a transformação acelerou-se a partir de 1960-1970”. Dá para pasmar: foi então com o fascismo que a grande transformação modernaça deu o salto em frente! A evolução na continuidade, finalmente consagrada por historiador do regime democrático. E o delírio continua, na pág. 769: “No início do séc. XXI Portugal constituía uma das sociedades europeias com mais casas, mais auto-estradas e que mais energia consumia per capita”. Para terminar (pág. 773): “um dos grandes trunfos da nova democracia em Portugal foi o desenvolvimento. A economia portuguesa entre 1961 e 1997 reduziu o hiato em relação à média europeia tornando Portugal oficialmente ‘um país desenvolvido’”. Fica assim confirmada a “evolução na continuidade”. Entre 1961 e 1997, nada de especial aconteceu, nenhum contratempo perturbou o firme progresso das reformas provindas do fascismo. Revolução do 25 de Abril ? Connais pas, como dizia a rafeira, ainda hoje deputada pelo PS. Pelos vistos e lidos, Rui Ramos navega na mesma onda. Revolução em 25 de Abril de 1974?! Um simples fait-divers para esquecer; um percalço sem importância de maior.
Em meu entender, o Capítulo XI da História Contemporânea de Portugal da responsabilidade do historiador Rui Ramos não merece maior atenção. Nem minha, nem decerto a dos leitores. Passemos, por conseguinte à oração fúnebre.
É vastíssima a bibliografia citada por RR, quer em notas quer num apêndice final. Seguramente, mais de duas centenas de autores e títulos. Até por lá constam livros de que sou autor; dos quais uma única frase foi seleccionada (pág. 728, nota 79). De qualquer modo, compete aos autores e aos coordenadores das obras seleccionar as fontes de informação que considerem adequadas à sua perspectiva e úteis ao seu projecto de trabalho. Assim se definem e se comprometem.
Todavia convém notar que não basta citar nomes e títulos. Nos últimos decénios amontoaram-se volumes sobre o caso português, em particular o 25 d’Abril; alguns contendo documentação incontornável. Como por exemplo, no livro “Os EUA e a Revolução Portuguesa”, publicado em 2008, sob a égide da Fundação Luso-Americana (entidade super respeitável para a direita indígena). RR cita esse livro sete vezes no Cap. X; contudo não enxergou a documentação anexa, e outros elementos, que tornam incontornável a realidade da ingerência americana no nosso país. O historiador RR mostra-se capaz de contornar o incontornável! Também isso o define e compromete.
O currículo profissional de RR contem farta cópia de trabalhos publicados; alguns em parceria com Ant. Reis e José Matoso, também eles historiadores “acarinhados” pelo sistema de poder em vigor,. O primeiro é quadro destacado do PS e da Maçonaria; e, em simultâneo, patrão do Departamento de História Contemporânea da Univ. Nova de Lisboa; cuja perspectiva historiográfica reflete fielmente a da classe dominante e a do governo em funções; José Matoso, por seu lado, é o mestre historiador que recomenda aos seus pares e discípulos (Jun. 2000) “ sobre os factos....pode ser que seja melhor esquecê-los que recordá-los”. Os vencedores da contra-revolução de Novembro agradecem reconhecidos.
Ora, por fim e finalmente, encontro-me de acordo com Rui Ramos, nesse ponto específico: os grandes vencedores e usufrutuários desta II República Democrática Portuguesa são, efectivamente, os restauracionistas da velha ordem do antigamente fascista, ainda sobrevivos ou na pessoa dos seus filhos e herdeiros em sangue, quadro de valores, conformismo natural e ganância adquirida. Ou seja, conforme publiquei em livro (Dez. 1999), com o título de: “Esta Democracia Filo-Fascista”.
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